Cristianismo e mitologia na telenovela "Império"

A telenovela brasileira "Império" voltou a ser exibida desde o dia 12 de abril de 2021 - o que me motivou a compilar uma série de cinco artigos sobre ela [1], que foram publicados no antigo "Blog do Leno" em março de 2015.




Escrita por Aguinaldo Silva [2], dirigida por Cláudio Boeckel, Luciana Oliveira, Roberta Richard, Tande Bressane e Davi Lacerda, com direção geral de Pedro Vasconcelos e André Felipe Binder, sob núcleo de Rogério Gomes, a telenovela "Império" foi uma das últimas que eu acompanhei do primeiro até o último capítulo e ela foi originalmente produzida e exibida pela Rede Globo no horário das 21 horas, de 21 de julho de 2014 a 13 de março de 2015 - uma sexta-feira.

Sim, a data original de exibição do capítulo final da telenovela "Império" foi uma sexta-feira 13, data que é tradicional e folcloricamente associada à bruxaria e ao azar [3] - e essa é uma associação cujos primeiros registros remontam ao século 19. Porém, tanto a associação do número 13, quanto a da sexta-feira com algo ruim existem desde a Antiguidade.

No caso, como informado pela Aventuras na História, o Cristianismo contribuiu para que a sexta-feira ganhasse um sentido negativo, uma vez que foi nesse dia da semana que Jesus foi crucificado, e para que o número 13 ganhasse um novo motivo de repúdio, visto que eram treze as pessoas presentes na última ceia de Jesus, com o traidor Judas Iscariotes sendo geralmente contado como o décimo terceiro.

E digo "um novo motivo de repúdio" porque, ainda de acordo com a Aventuras na História, os antigos gregos e romanos tinham o número doze como uma representação da perfeição, uma vez que é divisível por 1, 2, 3, 4, 6 e por ele mesmo, além de serem doze os meses do ano e os deuses do Monte Olimpo. O treze, por outro lado, sendo um número primo e de pouca utilidade, passou a ser associado a coisas ruins e à bruxaria.

Bruxaria essa que, na Antiga Grécia, era o domínio da deusa Hécate, pertencente à estirpe dos titãs e uma das senhoras do Submundo, o Hades. Podendo ser entendido como o Inferno dos antigos gregos, o Hades seria governado pelo deus olimpiano de mesmo nome, ambos desempenhando um papel fundamental para este artigo, pois a telenovela "Império" está recheada de referências ao mito de Hades e a seus equivalentes, por vezes parecendo ter sido construída em cima deles - e é a partir disso que se constrói este texto.

Organizei este artigo em seis partes:

1 - Um resumo da telenovela
2 - O Homem de Preto
3 - Cora, a donzela
4 - O cinturão do Homem de Preto
5 - Os dois braços direitos do Comendador
6 - José Pedro e João Lucas

Após as quais há, ainda, Considerações Finais.



1 - RESUMINDO A TELENOVELA

Basicamente, a telenovela trata da disputa entre os filhos do pernambucano José Alfredo de Medeiros pela sua herança e a sua divisão oficial é em "primeira fase" e "segunda fase", como é comum a tantas outras obras do gênero, mas, pessoalmente, eu a divido em quatro partes: 1 - A ascensão de José Alfredo; 2 - O sumiço do talismã; 3 - Morte e renascimento; e 4 - Fabrício Melgaço. 

Na parte 1, o então jovem protagonista, José Alfredo, se viu desempregado e se mudou para a casa do irmão, Evaldo, onde teve um caso com a cunhada, Eliane, e despertou a paixão da concunhada, Cora - que mentiu para ele, provocando a sua partida.

Na rodoviária, José Alfredo encontrou Sebastião, passando a trabalhar para ele como guarda-costas no Monte Roraima. Porém, ele não consegue impedir o assassinato do patrão e, a partir de então, dá continuidade ao trabalho do seu antigo chefe, indo para Zurique, na Suíça. Depois disso, ele se casa com a aristocrata Maria Marta Mendonça e Albuquerque, que conhecera no avião, e funda a famosa rede de joalherias denominada "Império".

Na parte 2, vemos que José Alfredo (também conhecido como Comendador ou Zé Alfredo) e Maria Marta tiveram três filhos: José Pedro, Maria Clara e João Lucas, mas acabaram divorciando-se e passando a viver às turras, com ela sempre tramando com a ajuda do seu filho preferido, José Pedro, para tomar o poder do ex-marido. Ele, por sua vez, dedica-se a fazer expedições pelo mundo e a se encontrar com a amante, Maria Ísis, incentivada pelos pais, Magnólia e Severo, a tirar dinheiro dele.


Lorraine rouba o diamante rosa da casa de Silviano.
Fonte da imagem: Purepeople.


Entretanto, todo o conflito motriz da obra só se desenvolve a partir do desaparecimento do talismã de José Alfredo no Monte Roraima. O talismã em questão é um diamante rosa sul-africano, que é símbolo de status e poder. Em meio a isso, o Comendador se depara com o surgimento de Cristina, a sua filha com Eliane, que, influenciada por Cora após a morte dos pais, tenta tirar o irmão (filho de Evaldo e Eliane) da cadeia - ele foi responsabilizado por um incêndio no camelódromo em que trabalhava. Depois de conseguir que o teste de paternidade seja feito, Cristina passa a integrar a família do Comendador e entra na disputa da herança com Maria Marta e sua prole.

Quanto à parte 3 da telenovela, ela trata da descoberta do modo pelo qual o Zé Alfredo enriqueceu e da sua procura pela Polícia Federal. No caso, ele enriqueceu de maneira ilícita, através do contrabando de pedras preciosas, motivo pelo qual a Polícia Federal passou a caçá-lo, motivo pelo qual ele forja a própria morte - antes, entretanto, ele deixa Cristina como a presidente interina da "Império".

Assim, depois de sumir por seis meses, nos quais trabalhou como garimpeiro para "fechar o ciclo", Zé Alfredo retorna para casa, vivendo num quartinho nos fundos do bar do seu amigo, Manoel, e aparecendo para Ísis, Josué e Antoninho, enquanto Cora, Du e João Lucas o viram por conta própria, Maria Marta apenas desconfiando de que ele ainda estaria vivo. Finalizando essa parte da obra, Zé Alfredo acaba sendo preso em frente à Unidos de Santa Teresa devido a uma armação feita por Maurílio e, depois de solto, retorna para a "Império".

É nesse ponto que tem início a quarta e última parte. No seu retorno à rede de joalherias, o Comendador descobre que ela está perto de falir devido a um enorme desvio de dinheiro dos cofres da empresa e também descobre que o Maurílio Ferreira não é o seu verdadeiro inimigo, mas sim certo Fabrício Melgaço, sendo o Maurílio Ferreira o filho de Jesuíno Ferreira e Silvano, este último sendo o ex-marido de Maria Marta, que passou a trabalhar para a ex-esposa como mordomo para não se afastar dela e eventualmente conseguir se vingar do homem que a tirou dele.

Por fim, descobre-se que o Fabrício Melgaço era, na verdade, o José Pedro e, no cativeiro em que Cristina era mantida pelos seus sequestradores, o Comendador mata o Maurílio, enquanto Silvano fere o braço de Josué, que o mata com vários tiros. O Comendador poupa a vida do filho, José Pedro, mas é baleado pelas costas. Cristina não permite que o meio-irmão parricida cometa suicídio. Então, João Lucas sucede ao pai e a telenovela termina com o registro fotográfico da família, sendo deixado no ar que Maria Marta e seu encarcerado filho poderão criar um novo "usurpador" (pois ela diz que o filho dele é seu neto preferido) e mostrado o espírito (até que se prove o contrário) de José Alfredo observando tudo de dentro da mansão.



2 - O HOMEM DE PRETO

O protagonista da trama, José Alfredo, é referido de diferentes formas ao longo da telenovela, como Zé Alfredo e Comendador, mas aqui importa o epíteto que lhe foi atribuído por Téo Pereira: o Homem de Preto.

Não, José Alfredo não seria um agente secreto em contato com alienígenas, ele apenas passa a maior parte do tempo trajado todo de preto, cor essa que é atualmente associada à morte e ao luto no Ocidente. Somando a isso o fato de ele viver bradando que jamais morreria, alegando possuir uma imortalidade, e a sua relação com pedras preciosas, temos este personagem como uma releitura dos senhores do Submundo: Hades, Plutão e Osíris - apenas para ficar nos mais conhecidos.

Dito isto, esta seção é dividida em duas partes: "O Comendador do Submundo" e "Análise do nome: os Josés do José Alfredo".


O COMENDADOR DO SUBMUNDO

Como já mencionado, o personagem protagonista da telenovela "Império" pode ser visto como uma releitura dos senhores do Submundo e os motivos já apresentados (vestir-se todo de preto - uma cor atualmente associada à morte, bradar ser imortal e a sua relação com pedras preciosas) não são os únicos.

Primeiramente, a relação dele com pedras preciosas precisa ser melhor explicada. No caso, essa relação existe por meio do seu trabalho no garimpo, ao diamante rosa que funciona como o seu talismã e à sua rede de joalherias - e isso o aproxima do deus Hades, também chamado de Plutão, que não era apenas a divindade do pós-morte e do mundo dos mortos, também sendo o deus das riquezas - porque possui todos os metais preciosos.

Outra coisa que relaciona o José Alfredo a essa divindade é o não pronunciamento do seu nome. Hades era tão temido, que as pessoas procuravam não pronunciar o seu nome, preferindo utilizar epítetos e outras denominações, como Plutão. Da mesma forma, durante toda a novela, dificilmente José Alfredo é chamado pelo seu nome, sendo referido principalmente como "Comendador", "O Homem de Preto", "O Abominável Homem de Preto", "Imperador" e outros. O seu nome é pronunciado quase que apenas pelos mais próximos, que, ainda assim, o fazem por meio de apelidos, como "Zé Alfredo" ou apenas "Zé".


O deus Hades com Cérbero.
Fonte da imagem: Avenutras na História.


Além disso, temos ainda uma relação com um dos senhores do Submundo estabelecida por meio da amante de José Alfredo: Maria Ísis. Se sua amante é Ísis, podemos tomar o Comendador como Osíris. Herói civilizador e soberano do Egito Primordial, Osíris levou a agricultura e a pecuária para outros povos, teve um filho com a cunhada Néftis, o deus Anúbis, e foi traído pelo irmão Seth, marido de Néftis, que o matou e retalhou (a quantidade de partes varia de acordo com a versão). Entretanto, Osíris ressuscitou e tornou-se o senhor do pós-morte.

São óbvias as semelhantes entre Osíris e José Alfredo, pois este: vivia viajando, metido em expedições, no começo da novela; teve uma filha com a cunhada; foi traído por um parente, no caso, o filho José Pedro, que o matou; voltou à vida depois de fingir a própria morte; e, depois de realmente morrer, retorna como espírito na última cena da novela.

Temos, ainda, a simbologia dos números de azar em torno do personagem, no caso, os números 4 (quatro) e 13 (treze). Já falamos a respeito deste último, que é um número de azar na parte ocidental do globo, mas cabe informar, ainda, que:


"(...). Na cultura cristã, isso tem uma explicação: Jesus Cristo seria o 13º à mesa junto a seus discípulos na última ceia, e acabou morrendo (tradicionalmente, numa sexta-feira). No tarô, 13 é o número do arcano Morte. A cabala também destaca em seus ensinamentos que há 13 espíritos do mal. Mas, apesar das ideias negativas em torno dele, o 13 também pode ser considerado auspicioso. Afinal, na mitologia grega, Zeus senta-se junto a outras 12 divindades do Olimpo, da mesma forma que fazia rei Arthur e os 12 cavaleiros da távola redonda. E a Apollo 13, que apesar de todos os problemas durante sua missão, retornou à Terra sem nenhuma baixa na tripulação." (MENEGHETTI. 2018).


Quanto ao outro, é considerado um número de azar em algumas partes da Ásia [9], como o Japão, a China, a Malásia, o Vietnã e em Singapura, devido ao sistema de escrita derivado do chinês, uma vez que a grafia do número é pronunciada como "shi", que lembra a palavra para "morte".

Agora, note que os dois números se relacionam por meio da chamada "decomposição numerológica", em que o número 13 tem as suas partes - o 1 e o 3 - somadas, resultando no número 4. Vale informar, ainda, que, no Ocidente, o 4 é visto como o número perfeito, pois:


"Na filosofia pitagórica, o 4 simboliza uma nova perspectiva depois dos três números iniciais, pois possibilita formas como  quadrado e a cruz. Por isso, é um número importante para algumas religiões. Há, por exemplo, quatro apóstolos evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João). No sufismo (corrente mística do Islã), são quatro as portas pelas quais o homem deve passar no caminho para a iluminação (Xaria, Tariqa, Marifa, Haqqiqa). E se na natureza há quatro elementos (terra, fogo, água e ar) o mesmo número é essencial na alquimia para fabricar a Pedra Filosofal, que teria enxofre, mercúrio, sal e Azoth (um elemento místico)." (MENEGHETTI. 2018).


Uma vez que falamos dos números em questão, vejamos em que parte eles aparecem: José Alfredo possui quatro filhos (Cristina, José Pedro, Maria Clara, João Lucas); quatro mulheres apaixonadas por ele (Eliane, Cora, Maria Marta e Maria Ísis) - das quais uma nunca se envolveu com ele (Cora) e três sim, formando um "13"; além disso, o diamante rosa se partiu em quatro e ele deixou 13 herdeiros, se José Pedro for desconsiderado: Maria Marta e Amanda, mais o filho desta com José Pedro; Maria Ísis; Cristina, Vicente e seus dois filhos; João Lucas, Du e seus dois filhos; e Maria Clara.


A foto dos treze herdeiros.
Fonte da imagem: YouTube.


Finalmente, um último elemento que relaciona o personagem aos senhores do Submundo e, mais especificamente, ao deus Hades, é a sua relação com a concunhada, Cora, pois tal relacionamento corresponde a uma reconstrução do mito do rapto de Perséfone por Hades. Porém, falarei melhor a respeito disso na seção "Cora, a donzela".


ANÁLISE DO NOME: OS JOSÉS DO JOSÉ ALFREDO

A partir disso, o meu primeiro passo, geralmente, é verificar a existência de alguma ligação por meio dos nomes e, para isso, consultei o site de etimologia da língua inglesa [4] de Douglas Harper.

Assim, Alfredo é um nome próprio masculino originário do antigo inglês Aelfraed, significando "conselho élfico" (de aelf, "elfo", e raed, "conselho"), podendo-se estabelecer uma relação com um dos epítetos de Hades, Eubeleu, que significa "O que dá bons conselhos".

José, por sua vez, é um nome masculino oriundo do latim Joseph ou Josephus, do grego Ioseph, derivado do hebraico Yoseph ou Yehoseph, significando "adições, acréscimos" e sendo a forma causativa de yasaph (ele adicionou), o seu uso em nomes de roupas e plantas costuma ser uma referência ao seu "revestimento de muitas cores" - e embora isso possa parecer uma contradição com a figura do Homem de Preto, cabe informar que a cor preta é o resultado da mistura de várias cores, em oposição à branca, que é a ausência de cores [5].

Agora, além dessas associações, o personagem carrega ainda o simbolismo possuído pelos personagens bíblicos dos quais ele herda o nome José. Aliás, há ao menos 13 personagens denominados José na Bíblia - e já vimos o quão simbólico é esse número, mas, aqui, importarão principalmente dois deles: o chamado "José do Egito", filho de Jacó e Raquel, e o José que se casou com Maria e foi o pai adotivo de Jesus.

Os 13 personagens de nome José na Bíblia são:


01 - O "José do Egito", filho de Jacó e Raquel;
02 - O José que foi pai de Jigeal e representante da tribo de Issacar, como um dos doze espias enviados por Moisés à terra de Canaã (Números 13:7);
03 - O José que foi filho de Asafe (1 Crônicas 25:2);
04 - O José mencionado na lista feita por Esdras de homens que casaram com mulheres estrangeiras quando voltaram do exílio e que se comprometeram a desfazerem os casamentos considerados "ilegais" (Esdras 10:42);
05 - O José que era sacerdote da família de Sebanias (Neemias 12:1 e 12:14);
06 - O José que foi filho de (outro) Jacó, marido de Maria e pai adotivo de Jesus;
07 - O José que foi filho de Jonã e um dos antepassados de Jesus (Lucas 3:30);
08 - O José que foi filho de Judá (ou Judas ou Jodá) e um antepassado de Jesus (Lucas 3:26);
09 - O José que foi filho de Matatias e outro antepassado de Jesus (Lucas 3:24);
10 - O José que foi meio-irmão de Jesus (Mateus 13:55);
11 - O José de Arimateia, que foi membro do Sinédrio e que favoreceu Jesus (Mateus 27:57-59 e Marcos 15:43-45);
12 - O José nomeado pelos apóstolo como Barnabé (Atos 4:36);
13 - O José chamado de Barsabás e que ganhou o nome de Justo (Atos 1:23).


Antes de abordar os dois Josés que mais importam aqui, cabe mencionar que seria possível estabelecer uma associação com alguns dos outros. No caso, o José da lista de Esdras se casou com uma estrangeira e o José Alfredo se casou com uma mulher - a Maria Marta - que conheceu ao viajar para a Suíça, aliás, por falar nessa viagem, assim como o José que foi filho de Jigeal foi para Canaã representando a sua tribo, o protagonista da telenovela não foi à Zurique no lugar do seu falecido patrão?

Outra relação que cabe mencionar aqui é com os Josés que são antepassados de Jesus, pois o nome da filha mais velha e bastarda de José Alfredo faz referência a Cristo. Ainda no tocante a Jesus, se este foi favorecido por José de Arimateia, membro do Sinédrio, Cristina foi favorecida por José Alfredo, sendo posta no cargo de presidente interina da "Império".


José do Egito

As referências ao José do Egito contidas no personagem principal da telenovela "Império" são muitas e chegam a ser bem claras.

Para começar, existe a relação de José Alfredo com a sua cunhada, Eliane, que pode ser vista como uma alusão a quando o então escravo José é tentado pela esposa do seu senhor, Pontifar.

Outra referência está na falsa morte, com a diferença que não mentiram a respeito da morte do José Alfredo, ele próprio fingiu a sua morte deliberadamente. Além disso, ambos passam por uma viagem que se segue após sua suposta morte, com o José bíblico indo parar no Egito, onde trabalhou como escravo, enquanto o José Alfredo passou a trabalhar como garimpeiro - o que dá quase no mesmo, considerando a frequência com que é noticiado o resgate de garimpeiros em trabalho análogo à escravidão [6].


Zé Alfredo, o garimpeiro.
Fonte da imagem: Terra.


Além dessas referências, também temos de forma muito presente na telenovela a interpretação de sonhos, habilidade em que o José do Egito seria um especialista, e a questão do favoritismo do pai por um filho e os problemas decorrentes disso, afetando os personagens José Pedro (favorito da mãe) e Maria Clara (favorita do pai até ser substituída por Cristina), sendo que, assim como José do Egito, Cristina, ao tornar-se a nova favorita de José Alfredo, se vê como alvo do irmão, que pretendia matá-la caso o pai não fizesse o que ele queria, isto é, a entrega do dinheiro desviado da "Império".

Essa situação é condizente com o episódio bíblico em que os irmãos de José ameaçam matá-lo, mas desistem e vendem-no como escravo - inclusive, se José Alfredo tivesse atendido à chantagem do filho, seria como se Cristina estivesse sendo vendida pelo meio-irmão ao próprio pai.

Agora, no que tange à narrativa, é possível descrever as similaridades da seguinte forma:


"Fraude" ou "A mulher como tentação": José do Egito é tentado pela esposa de Potifar e resiste, enquanto José Alfredo não resiste à paixão pela cunhada;

"Dano": a esposa de Potifar acusa José de ter tentado violentá-la, enquanto José Alfredo engravida a cunhada e acaba fugindo por conta de uma mentira de Cora, irmã dela;

"Afastamento": no caso do José do Egito, há dois, com o primeiro ocorrendo quando ele é vendido como escravo pelos irmãos e o segundo, quando ele vai preso. Quanto a José Alfredo, o afastamento ocorre quando ele foge, conhecendo Sebastião e passando a trabalhar para ele como guarda-costas;

"Designação da prova": no caso de José do Egito, essa prova designada é quando o Faraó ordena que ele vá à sua presença para interpretar o seu sonho. No caso de José Alfredo, é quando Sebastião ordena a ele para continuar a negociação e viajar para Zurique;

"Auxílio": há aqui o recebimento de um auxílio para que se possa vencer os contratempos que apareçam pelo caminho e ele pode ser um objeto mágico, um ser vivo ou uma habilidade. No caso de José do Egito, ele recebe a inspiração divina como auxílio, enquanto José Alfredo tem tanto Maria Marta quanto o diamante rosa.

"Estigma": enquanto José recebe do faraó um anel e é nomeado governador do Egito, José Alfredo recebe uma comenda, passando a ser chamado de Comendador.

"Vitória do herói": se o José do Egito alcança um elevadíssimo status, ficando abaixo somente do faraó, José Alfredo atinge uma posição de homem muito poderoso no país.


Vale mencionar que o esquema acima é baseado no conceito da "Jornada do Herói" ou "monomito" do antropólogo Joseph Campbell.


José, o pai de Jesus

Se a associação de José Alfredo com o José do Egito se dá por vários pontos ao longo da trajetória de vida, a relação do protagonista da telenovela "Império" com o pai adotivo de Jesus se dá em apenas um ponto, que corresponde a uma alusão à "Sagrada Família" do Cristianismo.

Nessa alusão, temos o Comendador como uma figura que corresponderia à "virtude do Altíssimo", essa correspondência sendo devida ao seu status social elevadíssimo e a visão que alguns têm dele, visão essa que o coloca no patamar de um semideus ou mais. De acordo com a Bíblia, em Lucas 1:34-35:


E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço homem algum?

E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Anjo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus.


Assim, Eliane corresponderia a Maria, enquanto Cristina, como o nome já deixa explícito, seria uma alusão a Jesus e o irmão do Comendador, Evaldo, seria correspondente ao carpinteiro José. Sim, nessa alusão, Evaldo é quem corresponde ao José.


Cristina e Zé Alfredo: pai ou Pai?
Fonte da Imagem: Blasting News.


Porém, é perfeitamente possível inverter as coisas, colocando o Comendador como uma correspondência do pai de Jesus e o seu irmão como sendo "a virtude do Altíssimo" [7], principalmente devido aos seguintes pontos:


1 - Não chegamos a saber o resultado do teste de DNA de Cristina, pois o Comendador o rasgou e o engoliu, sendo assumido que ela é filha biológica dele devido ao comportamento idêntico ao de José Alfredo;
2 - José Alfredo adotou Cristina com todos os direitos de filha biológica, tal qual José adotou Jesus;
3 - Assim como é afirmado que Jesus seguiu a profissão de carpintaria do pai adotivo antes de começar a pregar por volta dos seus 30 anos, Cristina - que não possui 30 anos - também segue, de certo modo, a profissão de José Alfredo;
4 - Depois de ter se envolvido com Eliane, José Alfredo envolve-se com duas mulheres com o nome Maria, no caso, Maria Marta e Maria Ísis.


Note que Eliane é uma variação de Eliana, nome oriundo do latim Aeliana, feminino de Aelianu, cujo significado seria "de Élio, de natureza de ou pertencente a Élio". O que seria "Élio"? Esse nome pode ser oriundo do latim Elius, significando "natural ou habitante da Élida" [8], também podendo ser uma variação do nome Hélio, o deus solar grego, ou originário do hebraico El Elion, que quer dizer "O Altíssimo" - nesse último caso, Eliane significaria algo como "da natureza do Altíssimo", o que apenas reforça a alusão.



3 - CORA, A DONZELA

Conforme dito no fim da subseção "O Comendador do Submundo", na seção "O Homem de Preto", a relação entre o protagonista José Alfredo e a sua concunhada Cora seria uma reconstrução do mito do rapto de Perséfone por Hades - motivo pelo qual reforça na visão de que o personagem seria uma alusão aos senhores do Submundo. Aqui, nesta seção, explicarei melhor o porquê de tal relação ser a já mencionada reconstrução.

Em primeiro lugar, a irmã de Eliane e concunhada de José Alfredo se chama Cora, um nome que também era um dos epítetos da deusa grega Perséfone, esposa de Hades e filha de Zeus com sua irmã, Deméter. Na verdade, a deusa era chamada de Kore, mas tal nome é frequentemente adaptado para a forma Cora e, segundo Pandiá Pându e Ana Pându (2005, p.152), significaria "a criada" ou "a virgem", enquanto Rigoglioso (p.115) aponta que Koura, Kourê ou Korê significa "donzela, virgem" - e esses significados correspondem perfeitamente à personagem da telenovela, pois ela morreu virgem.


Drica Moraes como a Cora mais velha e Marjorie Estiano como
a Cora jovem e rejuvenescida.
Fonte da Imagem: GShow.


Isso posto, por qual motivo a relação entre Cora e José Alfredo é uma reconstrução do Mito do Rapto de Perséfone? Basicamente, porque:


1 - Com o consentimento de seu irmão, Zeus, e pai de Perséfone, o deus Hades saiu subitamente de uma fenda no solo para raptar a donzela. Na trama da telenovela, José Alfredo apareceu na vida de Cora ao ir morar na casa do irmão, Evaldo, a diferença é que ele se apaixonou por Eliane e fez planos de fugir com ela, não com Cora. Note, ainda, que, segundo Pandiá Pându e Ana Pându (2005, p.169), Evaldo é uma variação do teutônico Euvaldo, que significaria "corajoso para fazer cumprir a lei", algo muito condizente com Zeus, senhor do céu e da justiça;

2 - Todo ano, Perséfone passava um tempo longe do lar do marido, ficando na superfície, na companhia de sua mãe, Deméter. Na telenovela, José Alfredo e Cora ficam um longo tempo sem qualquer contato;

3 - A perseguição obsessiva que Cora empreendeu ao José Alfredo alude à busca enfurecida que Deméter fez por sua filha raptada [9] - e digo isso porque há quem diga que as duas deusas, na realidade, eram as duas faces de uma mesma divindade;


Dito isso, uma explicação para que Cora e José Alfredo não tenham constituído um casal está justamente na virgindade dela, pois, ao se casar com Hades, Perséfone obviamente deixou de ser virgem. Deste modo, pode-se entender que houve uma reconstrução do mito baseada na possibilidade de o deus ter raptado não a própria sobrinha, mas sim uma das ninfas que brincava com Perséfone.


A deusa Cora, Perséfone ou Proserpina
retratada na pintura "Proserpine",
de Dante Gabriel Rossetti.
Fonte da Imagem: Wikipedia.


Além disso, Perséfone ficou eternamente vinculada ao Submundo após comer um dos romãs de tal lugar, romã esse que pode ser entendido como um simbolismo para o ato sexual [10], principalmente porque tal fruto é consagrado a Afrodite, a deusa do amor carnal e da volúpia.

Há, ainda, outros elementos que correlacionam Cora à deusa Perséfone  e que são as mortes provocadas por ela, os seus pretendentes, a situação de sua irmã antes de morrer e a sua própria morte.

No caso, Cora provocou várias mortes e a deusa Perséfone, como esposa do senhor do Submundo, possuía algum domínio sobre as almas desencarnadas. Além disso, Cora teve alguns pretendentes e Perséfone não foi a mais fiel das esposas, tendo um filho com o próprio pai, Zeus, e outro com o seu meio-irmão, Héracles [11].

Quanto a Eliane, irmã de Cora, ela parecia vegetar antes de morrer e pode-se dizer que isso alude a Menthe, ninfa que teve um caso com Hades e foi transformada por Perséfone numa planta destinada a vegetar na entrada de cavernas ou na entrada do Submundo.

Finalmente, a própria morte de Cora alude a Perséfone, pois, na cena em questão, ela alucina que o Comendador veio beijá-la e, então, morre. Desta forma, temos nessa cena tanto uma alusão a quando Hades deixa os seus domínios para raptar Perséfone, quanto à expressão "beijo da morte".



4 - O CINTURÃO DO HOMEM DE PRETO

Nesta seção, trato de três das quatro mulheres mais próximas ao Comendador José Alfredo e do seu significado, baseando-me na cena da despedida final do Comendador, em que as quatro seguintes mulheres despedem-se no topo do Monte Roraima: Maria Marta, Maria Clara, Maria Ísis e Cristina - esta última não será considerada aqui, tanto porque ela carrega outro significado, a ser esmiuçado na seção "Os dois braços direitos do Comendador", quanto porque uma das representações carregadas pelas três outras mulheres é o das Três Marias.


Maria Isis, Maria Marta, Maria Clara e Cristina.
Fonte da Imagem: GShow.


As três primeiras mulheres mencionadas possuem em comum um nome composto e o nome Maria como o primeiro elemento de composição. A propósito, esse nome próprio é oriundo do hebraico Miriam, Miryam ou Myriam, que significaria "senhora, soberana" (PÂNDU e PÂNDU. 2005, p.223), "rebelião" (HARPER. 2001-2021) ou "senhora soberana, vidente" (DIANA, BORGES e FUKS. 2008-2021), também sendo possível que signifique "a pureza, a virtude, a virgindade" por meio do sânscrito Maryáh (DIANA, BORGES e FUKS, 2008-2021). Vale mencionar que o segundo elemento de composição do nome de cada personagem é crucial para esta análise.

No caso, Marta viria do aramaico Maretha, significando literalmente "senhora, mestre", sendo o feminino de mar, mara (senhor, mestre, patroa), com a associação a alguém preocupado com os assuntos domésticos vindo de Lucas 10:40-41 (HARPER. 2001-2021) - motivo pelo qual alguns, como Pându e Pându (2005, p.223), apontam que tal nome significaria "dona de casa" ou "senhora da casa". Diana, Borges e Fuks (2008-2021) apresentam todos esses significados para tal nome.

Por sua vez, o nome Clara é oriundo do latim Clara, feminino de Clarus, e tem um significado bem óbvio: "brilhante", "ilustre", "luminosa", "clara" (DIANA, BORGES e FUKS. 2008-2021; HARPER, 2001-2021).

Quanto a Isis, esse nome é proveniente de Isis, forma grega para o nome da deusa egípcia Aset ou Eset e para um antiga palavra egípcia cujo significado seria "trono" (TYLDESLEY. 2021), Harper (2001-2021) indicando que o grego Isis viria do egípcio Hes e que tal divindade teria sido identificada pelos gregos com Io - uma das várias amantes de Zeus.

Com os nomes escamoteados, podemos tratar do porquê essas três mulheres reforçam que o Comendador seria um senhor do Submundo e da associação delas com as Três Marias.


TRÊS SENHORAS DO SUBMUNDO

É apartir do significado dos seus nomes que podemos ver que todas as três Marias corroboram o status de José Alfredo como um senhor do Submundo, pois todas elas poderiam ser associadas a alguma divindade feminina do Submundo.

No caso, Maria Marta, a "Soberana Dona de Casa" ou "Senhora Mestre", pode ser associada à deusa Hécate, uma divindade feminina que testemunhou o sequestro de Perséfone e ajudou na busca por ela - e quando Cristina, sobrinha de Cora (associada a Perséfone), foi sequestrada pelo meio-irmão, Maria Marta não deixou de ligar para o Comendador, avisando-o. Além disso, esta deusa representava aspectos terrificantes da Mãe Terra, as mulheres, a feitiçaria e a Lua - sendo esta última vista como a morada dos mortos.

Ela também seria acompanhada por cães e também era representada como tendo três cabeças, as quais podem ser a de um leão, a de um cão e a de um cavalo ou jumento, que poderiam ser associadas à personalidade de Maria Marta, que possui certa nobreza (como o rei dos animais), leal em certa medida (como um cão) e teimosa (como um jumento).

Quanto à Maria Clara, não há muito o que associar com ela, exceto pelo nome, uma vez que "Senhora Brilhante" pode ser relacionado à deusa nórdica Hel, que teria metade do rosto coberto pela escuridão e a outra metade seria branca - cor que reflete a luz. Além disso, ela trabalha com o design de pedras preciosas e estas são um dos domínios de Plutão.


A deusa Ísis.
Fonte da imagem: Escola Educação.


Maria Ísis, por sua vez, é a "Senhora Trono" ou "Senhora do Trono", isso por si só já servindo para corroborar a posição do Comendador como um soberano, mas, além disso, a deusa Ísis seria a esposa de Osíris, deus civilizador do Antigo Egito e que, após ser morto pelo irmão Seth, tornou-se o senhor do submundo.


AS TRÊS MARIAS

As três personagens chamadas Marias simbolizariam o quê exatamente enquanto "as Três Marias"? Considerando que esse conjunto de estrelas faz parte da constelação denominada Órion, seria necessário verificar o mito por trás dela, porém, não há muito o que relacionar com tal história, exceto que também há três mulheres próximas ao gigante Órion, no caso, Mérope, Eos e Ártemis.


A constelação de Órion, com as Três Marias no centro.
Fonte da imagem: Research Gate.


Portanto, sem ter muito com o que relacionarmos na mitologia, resta-nos a astronomia e o esoterismo. Quanto a esse último, voltamos novamente ao Egito, porque as três grandes porâmides de Gize estariam alinhadas com as três estrelas do Cinturão de Órion, também chamadas de Três Homens Sábios. Aqui, o esoterismo se apresenta no fato de esse alinhamento ser utilizado por diversos grupos para relacionar as pirâmides com esdrúxulas teorias espirituais associadas ou não com visitas alienígenas. Fora isso e ainda no que cerne ao Egito, na Antiguidade, o Cinturão de Órion era relacionado ao deus Osíris, como um símbolo.

Quanto à astronomia, as estrelas do Cinturão de Órion se chamam Mintaka (Cinto) ou Delta Orionis, Alnilam (O cinto) ou Epsilon Orionis e Alnitak (Colar de pérolas) ou Zeta Orionis. A primeira é a mais ocidental e, na verdade, é um sistema estelar binário, ou eja, não é uma estrela, mas sim duas. A segunda é a estrela central e a mais brilhante, porém, é a que tem a temperatura mais amena. Por fim, a terceira é a mais fraca das três e é, na verdade, um trio de estrelas, com uma quarta não confirmada [12]Agora, como poderíamos relacionar as "três" estrelas às três Marias da vida Comendador?

Maria Marta pode ser relacionada à Mintaka, porque, assim como esse astro é, na verdade, um par de estrelas, a personagem parece ter uma necessidade por constituir um par, primeiro estando com Silvano e depois com José Alfredo, além de estabelecer um favoritismo com um dos filhos, José Pedro, e, depois, com o filho dele.

Maria Clara, por sua vez, pode ser associada à Alnilam, na medida em que o seu nome combina com o fato de a estrela ser a mais brilhante do Cinturão - e outra coisa muito brilhante relacionada à personagem é a sua formação universitária e o seu trabalho como desenhista de modelos de jóias, que são sempre ressaltados. Além disso, assim como Alnilam é a estrela central das Três Marias, Maria Clara é a filha do meio do Comendador com Maria Marta.

Por fim, Maria Ísis corresponderia à Alnitak, pois, assim como esta possui um brilho fraco, a personagem poderia ser considerada a mais frágil das três mulheres. Além disso, assim como a estrela é, na verdade, um conjunto de estrelas, Maria Ísis fazia parte de algo maior, sustentando os pais e também o irmão, que, aqui, pode ser visto como a quarta estrela.



5 - OS DOIS BRAÇOS DIREITOS DO COMENDADOR

Conforme mencionado na seção "O Homem de Preto", Cristina alude à figura de Jesus Cristo e, assim como este é posto à direita de Deus [13], a filha bastarda do Comendador passa boa parte da telenovela atuando como o braço direito do pai, chegando, inclusive, a assumir o seu lugar provisoriamente.

Curiosamente, o nome de batismo do messias seria uma homenagem a outro personagem: Josué, que nasceu Oséas e foi rebatizado por Moisés. Ambos os nomes, Josué e Jesus, são Yehoshua e Yeshua em hebraico, respectivamente, com Yeshua sendo uma abreviação de Yehoshua e é a palavra hebraica para "salvação". Mas qual a relação disso com a personagem Cristina?

Toda, pois, assim como Josué atuou como importante ajudante de Moisés e o sucedeu após a morte, Cristina foi um verdadeiro braço direito para o pai e o sucedeu no comando da rede de joalherias após a sua falsa morte. Mas a coisa não para por aí nem se restringe a Cristina, pois a telenovela também possui o personagem Josué, que é o principal ajudante de José Alfredo, principalmente em assuntos tradicionalmente vistos como mais viris, tais quais os que envolvem conflito armado - e o Josué bíblico também destacou-se como um excelente líder militar.


Cristina e Josué com José Alfredo em sua morte.
Fonte da imagem: Purebreak.


Portanto, o que temos aqui é a figura bíblica Josué referenciada de forma dividida, com uma metade correspondendo a Cristina e a outra a Josué. No caso, a primeira metade seria "espiritual", pois, assim como Josué passa a falar com Deus após a morte de Moisés, Cristina mantém contato com o "finado" Comendador, que, como já visto, também pode ser visto como uma alusão a Deus. Quanto à outra metade, ela seria "militar", devido a já mencionada correspondência bélica entre o personagem novelesco e o bíblico.


José Alfredo e Moisés.


Para encerrar esta seção, tudo isso acaba acrescentando uma interpretação ao personagem José Alfredo: ele também seria uma representação de Moisés. Isso pode ser corroborado pela pedra rosa, que corresponderia à pedra em que foram escritos os dez mandamentos - ambas, inclusive, se quebraram - e pelas cenas do Comendador sobre o Monte Roraima, em que a postura do personagem em muito se assemelha às representações de Moisés sobre o Sinai ou abrindo o Mar Vermelho.



6 - JOSÉ PEDRO E JOÃO LUCAS

Como visto, a telenovela Império possui muitas referências ao Cristianismo e os dois filhos homens de José Alfredo também guardam essas referências, que já se mostram expressas nos nomes.


JOSÉ PEDRO

O mais velho, José Pedro, possui o mesmo primeiro nome possuído pelo pai, carregando, portanto, as mesmas referências e significados que ele. Tanto que, durante boa parte da novela, José Pedro é casado com uma mulher cujos filhos não são dele e, assim como o José do Egito, o personagem foi preso.


Fonte da imagem: Purepeople.


Quanto ao segundo nome, Pedro, ele é oriundo do grego Pétros, derivado de petra, que significa "pedra, rochedo", o que por si só já relaciona o personagem ao talismã de José Alfredo e ao envolvimento dele com o roubo dos fragmentos do diamante rosa. Há, ainda, por meio desse nome, uma referência ao apóstolo Pedro, que teria sido capturado, negado o seu mestre por três vezes e, segundo a tradição, fundado a Igreja, se tornando o primeiro Papa.

No caso, tem-se aqui uma correspondência das três negações às três tentativas de homicídio de Fabrício Melgaço (José Pedro) contra José Alfredo - e, lembrando da relação do Comendador com o número 13, essa traição também cria uma relação com Judas. Inclusive, se Judas traiu Jesus por trinta denários, José Pedro sequestou Cristina e exigiu dinheiro para entregá-la viva, sem contar que a tradição dita que Judas cometeu suicídio após ter entregado seu mestre e José Pedro tentou o suicídio após matar o próprio pai.


JOÃO LUCAS

Quanto ao João Lucas, o seu primeiro nome significa "agraciado por Deus, Deus é gracioso, Deus favoreceu", sendo derivado do hebraico Yohanan, cuja forma longa é y'Hohanan. Lucas, por sua vez, vem do latim, sendo uma contração de Lucanus, que significa "da Lucânia" e há quem também atribua a este nome o significado de "luz" ou "luminoso", e eu acredito que isso se deva à semelhança com o nome Lúcio, do latim Lucius, derivado da palavra lux, que significa "luz".

Portanto, temos aqui algo como "Agraciado por Deus com a Luz" ou "Deus favoreceu o luminoso", algo que aponta para João Lucas como o sucessor de José Alfredo, uma vez que isso implicaria que o personagem porta a luz e "portador da luz" é a tradução para Lucifer, nome que, em algumas traduções da Bíblia, pode se referir desde a Estrela da Manhã até o próprio Jesus Cristo - e isso tem outra associação, feita a partir dos evangelhos.


Fonte da imagem: Purepeople.


Se não há evangelhos canônicos atribuídos a José e a Pedro, há, por outro lado, os evangelhos de Lucas e de João - os quais serão vistos aqui, com ênfase nas suas peculiaridades, a começar pelo Evangelho Segundo Lucas.

Sendo um evangelho sinóptico, ele compartilha de boa parte do conteúdo presente nos evangelhos que lhe são anteriores, no caso, o de Mateus e o de Marcos. Aliás, o fato de ele ser o mais novo dos três evangelhos sinópticos coincide com o João Lucas ser o filho mais novo de José Alfredo e Maria Marta. Mas o que esse evangelho contém que poderia ter relação com o personagem e a novela em si?

Pode-se destacar dois elementos. Primeiramente, uma das características desse evangelho é a presença de poucas palavras em hebraico, dentre as quais se destaca uma palavra transliterada do hebraico para o grego, sikera (do hebraico shakar, "ele está intoxicado"), designando uma bebida estimulante da natureza do vinho, mas não processada de uvas, sendo, provavelmente, um vinho de palmeira. Isso se relaciona com o personagem por ele aparecer embriagado muitas vezes ao longo da novela.

O outro elemento é a presença da famosa passagem do Sermão da Montanha [14], que seria uma forma encontrada pelo autor do texto bíblico de relacionar a imagem de Jesus com a de Moisés e, como já visto, José Alfredo também referencia Moisés, de modo que a montanha aqui seria o Monte Roraima. Isso poderia ser um indício de que o personagem já estaria cotado como o sucessor do pai, assim como Jesus seria de Moisés.

Quanto ao Evangelho de João, ele foi o último dos quatro evangelhos a ser escrito, da mesma forma que João Lucas é o último dos quatro filhos de José Alfredo. Além disso, ele é o único que apresenta Jesus sob uma ótica divinizadora, enfatizando o seu caráter divino, enquanto todos os três evangelhos sinóticos dão ênfase a Jesus enquanto homem.

Esse último ponto implica em duas relações: 1 - a de João Lucas com seu pai, admitindo e aceitando o caráter espiritual dele, o que se manifesta através do sonho-visão de sucessão que ele tem, da necessidade da ida ao Monte Roraima e do encontro do terço perdido de José Alfredo; 2 - a relação dele com Cristina, pois ele, por um bom tempo, foi o único dos filhos de José Alfredo e Maria Marta que reconhecia a dita cuja como irmã legítima, isso podendo ser entendido como uma alusão ao já mencionado fato de o Evangelho de João ser o único dos canônicos que apresenta um Jesus divino.


O LADRÃO ARREPENDIDO

Finalmente, existe ainda uma relação entre os dois irmãos por meio de algo expresso no Evangelho de Lucas, pois ele é o único que diz que um dos ladrões crucificados próximo a Jesus se arrependeu e recebeu do messias a promessa do paraíso.

No caso, José Pedro é ladrão tanto por ter desviado o dinheiro da empresa, quanto por ter roubado os fragmentos do diamente rosa e a sua tentativa de suicídio após ter matado o próprio pai pode ser vista como uma mostra de arrependimento, sendo que Cristina não permitiu que ele concluísse o ato - e isso pode ser entendido como "a promessa do paraíso", visto que, dessa forma, o primogênito de Maria Marta poderia novamente tentar se apossar da empresa, coisa que, aliás, fica subentendida quando a mãe dele o visita na cadeia.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, há muito de Cristianismo e mitologia, sobretudo a greco-romana, em meio à telenovela Império e, na verdade, acredito que o que foi apresentado aqui seja apenas o mais básico, com boa parte correspondendo às coisas mais óbvias. Certamente, muito mais ainda poderia ser discutido e analisado, como, por exemplo, uma relação entre as três cabeças de Cérbero e os três filhos de José Alfredo com Maria marta, porém, o texto já ficou muito mais longo do que o pretendido, então, talvez noutro momento eu volte a abordar o assunto - e falarei mais sobre novelas, seriados e afins.







NOTAS

[1] Os artigos em questão foram publicados em 13 de abril de 2015 no meu antigo blog, o "Blog do Leno", sendo eles: "A telenovela Império: Cristianismo e mitologia", "O Homem de Preto", "Cora, a donzela", "O cinturão do Homem de Preto", "Os dois braços direitos do Comendador" e "José Pedro e João Lucas".

[2] Com colaboração de Márcia Prates, Nelson Nadotti, Rodrigo Ribeiro, Maurício Gyboski, Renata Dias Gomes, Zé Dassilva, Megg Santos e Brunno Pires.

[3] De acordo com o dicionário Priberam, a palavra azar é oriunda do árabe az-zahar, que significa "felicidade, acaso feliz, dado" e que vem de zahr, que quer dizer "flor" - isso porque pintava-se uma flor numa das faces do dado. Douglas Harper (2001-2021), dentro da entrada "hazard (n.)", apresenta como origem do espanhol azar o árabe az-zahr, de al-zahr, significando "o dado".

[4] Sites de etimologia da língua portuguesa são escassos e os poucos existentes que eu conheço não deixam claro quais são as suas fontes.

[5] Em se tratando de pigmentação, não de luz, que é outra história. Aliás, três maneiras de se produzir a cor preta são: misturando azul, vermelho e amarelo; misturando quaisquer duas cores complementares (isto é: opostas no círculo cromático); e misturando azul com marrom.


[7] A Bíblia Católica utiliza o termo "força" no lugar de "virtude".

[8] A Élida é uma região da Grécia localizada no Peloponeso.

[9] Durante tão busca, Deméter simplesmente deixou de lado qualquer serviço à Terra, que enfrentou uma seca sem precedentes.

[10] Da mesma forma que algumas interpretações do episódio bíblico do fruto proibido consideram o fruto em questão como uma metáfora para o ato sexual.

[11] Com Zeus, ela teria tido Melinoe, deusa dos fantasmas e das oferendas e cerimônias fúnebres. Com Héracles, ela teria tido Zagreu, que algumas versões apontam ser filho de Zeus.

[12] As estrelas são Zeta Orionis A, Zeta Orionis B e Zeta Orionis Ab ou Alnitak Aa, Alnitak Ab e Alnitak B, com a estrela não confirmada sendo Alnitak C.

[13] Como nas passagens bíblicas: Salmo 110; Marcos 16:19; Lucas 22:69; Mateus 22:44; Efésios 1: 19,22 e Atos 2:34.

[14] Também presente no Evangelho de Mateus.





REFERÊNCIAS

AVENTURAS NA HISTÓRIA. De Judas aos cavaleiros templários: as origens da macabra sexta-feira 13. Publicado em: 13 NOV 2020, às 00h00. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/por-que-a-sexta-feira-13-e-considerada-um-dia-azarado.phtml>. Acesso em: 14 ABR 2021.

BÍBLIA, N. T. Lucas. In: Bíblia. Português. Bíblia Sagrada Almeida Corrigida Fiel. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/lc/1?q=Lucas+1%3A13>. Acesso em: 18 ABR 2021.

COISAS DO JAPÃO. Qual o motivo de quase não encontrar o número 4 no Japão? Publicado em: ABR 2019. Disponível em: <https://coisasdojapao.com/2019/04/qual-o-motivo-de-quase-nao-encontrar-o-numero-4-no-japao/>. Acesso em: 19 ABR 2021.

DIANA, Daniela. Deus Hades. In: Toda Matéria. 2011-2021. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/deus-hades/>. Acesso em: 19 ABR 2021.

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DIANA, Daniela; BORGES, Gessica; FUKS, Rebeca. Eliane. In: Dicionário de Nomes Próprios. 2008-2021. Disponível em: <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/eliane/>. Acesso em: 22 ABR 2021.

DIANA, Daniela; BORGES, Gessica; FUKS, Rebeca. João. In: Dicionário de Nomes Próprios. 2008-2021. Disponível em: <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/joao/>. Acesso em: 09 MAI 2021.

DIANA, Daniela; BORGES, Gessica; FUKS, Rebeca. Lucas. In: Dicionário de Nomes Próprios. 2008-2021. Disponível em: <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/lucas/>. Acesso em: 09 MAI 2021.

DIANA, Daniela; BORGES, Gessica; FUKS, Rebeca. Maria. In: Dicionário de Nomes Próprios. 2008-2021. Disponível em: <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/maria/>. Acesso em: 22 ABR 2021.

DIANA, Daniela; BORGES, Gessica; FUKS, Rebeca. Marta. In: Dicionário de Nomes Próprios. 2008-2021. Disponível em: <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/marta/>. Acesso em: 22 ABR 2021.

DIANA, Daniela; BORGES, Gessica; FUKS, Rebeca. Pedro. In: Dicionário de Nomes Próprios. 2008-2021. Disponível em: <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/pedro/>. Acesso em: 09 MAI 2021.

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3 Comentários

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